Menino 23, o filme. O Brasil dos anos 30 encontra o Brasil de 2016. por Renata Hummel

Assisti ao filme brasileiro “Menino 23” há algumas semanas. Saí de queixo caído. O filme é baseado nas pesquisas do historiador Sidney Aguilar, que encontrou tijolos com a suástica nazista em uma fazenda no interior de São Paulo. A partir da descoberta dos tijolos, Aguilar foi desvendando a história espantosa de meninos negros moradores de um orfanato no Rio de Janeiro que foram retirados de lá por uma família quatrocentona paulista e feitos de escravos em sua fazenda no interior de SP. O historiador encontra dois sobreviventes, Aloisio Silva e Argemiro Santos, e recupera a história de “Dois”, o menino que foi escolhido para fazer o trabalho doméstico e acompanhar o filho da família.

O documentário de Belisario Franca vai acompanhando as investigações e abrindo espaço para as falas de Aguilar, Silva e Santos, além da família de “Dois”, já falecido. Aliás, Aloisio Silva é o “menino 23” do título, pois todos os meninos retirados do orfanato recebiam números e eram assim chamados na fazenda. Teriam sido cerca de 50 meninos, entregues à tradicional família Rocha Miranda pelo orfanato, deslocados para o interior de São Paulo para viver um cotidiano de banhos frios, trabalhos extensos, ameaças de morte, espancamentos constantes e cativeiro durante os anos 30, em São Paulo. Já seria o suficiente para causar revolta não? Pois não é só isso. A família em questão, tradicional, poderosa, rica, influente no interior de São Paulo era afiliada aos ideais nazistas, ao integralismo e às teorias eugênicas que na época se popularizavam.

A ideia da construção de uma “raça brasileira” que expurgaria tudo que era considerado “cientificamente” (muitas aspas, já que hoje sabemos que era uma pseudociência) “inferior” ou “doente” – leia-se negros, índios, miscigenados, pobres – data já do começo do século no Brasil, e foi se fortalecendo com a divulgação das teorias eugênicas pelo médico paulista Renato Kehl. Em 1918, a Sociedade Eugênica de São Paulo foi fundada e tinha como associados educadores, escritores, médicos, sanitaristas, políticos. As discussões entre os participantes iam de esterilização forçada, chamada de “antidegenerativa” à proibição de “certos” imigrantes, além de passar pela doutrina de “higienização” que originou a vacinação forçada, a destruição de cortiços e moradias populares, e forçou a população pobre (considerada “suja” e “vetor de doenças”) a ocupar precariamente morros e periferias, longe dos centros urbanos. Tais doutrinas, fortalecidas pelo avanço nazista na Europa (que pregava não apenas a “higienização”, mas a eliminação daquele considerado “inferior”), formam o pano de fundo da ação da família Rocha Miranda (que aliás tinha negócios com empresas alemãs) na escravização dos meninos negros – assim como da aceitação oficial, institucional, da retirada dos meninos do orfanato. Como é possível que 50 meninos orfãos sejam colocados sob a tutoria de membros de uma família paulista, sem qualquer investigação ou acompanhamento? Só foi possível na medida em que era mais que aceitável classificá-los como membros de uma “raça inferior”, “degenerada”, e portanto colocá-los “em seu lugar”: o trabalho escravo.

Os meninos cresceram em sofrimento. Não tiveram acesso ao estudo e às brincadeiras de criança, apenas ao trabalho duro na fazenda, aos castigos cruéis e ao cativeiro prolongado. O alinhamento brasileiro aos aliados e a derrota da Alemanha na Segunda Guerra mudou o cenário político. A família poderosa, nos mostra o filme, é obrigada a esconder os símbolos nazistas e sua filiação ideológica. Coloca os meninos, já adolescentes, para fora da fazenda, sem absolutamente nada (onde é que já vimos isso acontecer na história do nosso país? Não foi isso que aconteceu na abolição da escravidão?). Aloisio fica na cidade. Argemiro entra na marinha. “Dois” permanece no trabalho doméstico, acreditando-se parte da família e do seu prestígio – até que percebe que ficou fora das lembranças e dos testamentos, sem direito a nada, sequer salário e aposentadoria. Se acaba na decepção e no alcoolismo. Os outros se perdem pelo mundo. Enfrentam um cotidiano de revolta, doença, abandono, pobreza, alcoolismo. E a família Rocha Miranda? Continuou poderosa, influente, rica. Não é que já vimos também essa história antes, muitas vezes?

O filme “Menino 23” conta uma história que nos parece única, um evento particular. Porém parte do impacto do filme não é esse, e sim a relação que podemos fazer entre aquele Brasil dos anos 30 e o Brasil atual de 2016. É terrível observar como o preconceito, a violência, a exclusão e suas justificativas permanecem tão presentes no Brasil de hoje. Ninguém mais fala em “eugenia” ou “nazismo”, pelo menos abertamente, mas os ideais racistas permanecem no ar e se materializam com frequência nesse Brasil do século XXI. Pensei nisso quando li os relatos da página “Eu empregada doméstica”, por exemplo[1]. Ou quando assisti o filme “Domínio Público”[2], documentário que investigou, entre 2011 e 2014, os efeitos dos megaeventos no Rio de Janeiro para a população das comunidades, como implantação de UPPs (e seus enormes problemas), remoções forçadas, privatizações, conflitos com mortos e feridos constantes, presença militar nos morros, etc. Ou quando ouço relatos, na minha sala de aula, de experiências racistas, machistas e homofóbicas que meus alunos passam, quase sempre combinadas com preconceito de classe social – e são muitas e muitas, e acontecem diariamente. Estão por aí essas ideias terríveis dos anos 30: nos patrões, nas empresas, nas políticas de governo, na forma como pessoas pobres, negras, indígenas, gays, trans, mulheres, são tratadas e vistas nesse país, dia a dia. Triste que seja assim porque parece que de vez em quando damos passos reais para acabar com isso no Brasil. Só para descobrir que há muito a ser feito ainda.

[1] Aqui (https://www.facebook.com/euempregadadomestica/?fref=ts).

[2] Para assistir o filme “Domínio Público, completo, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=dKVjbopUTRs.

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