Escola sem Partido – Marcha à ré na educação – Por Renata Hummel

                Tanto já se falou e escreveu sobre como a escola ficou “parada no tempo” em termos de objetivos, formas e conteúdos, que não acredito que possa acrescentar nada que não tenha sido dito antes. O dado novo é a tentativa atual de botar uma marcha à ré no já complicado sistema escolar, ou seja, retroceder. Estou aqui chamando de “retrocesso” as variadas tentativas de controlar a atuação dos professores em sala de aula, especialmente dos professores das chamadas “humanas” (História, Geografia, Filosofia, Sociologia, e, porque não, incluiria Arte), representadas em projetos de lei como “escola sem partido” (a serem votados nos Estados e na Federação), nos movimentos contra a discussão de gênero no currículo escolar dos planos municipais e estaduais de educação, nos projetos frequentes de desobrigatoriedade de ensino de Filosofia e Sociologia (que entram e saem de pauta desde 2008, quando foram recolocadas como obrigatórias no currículo), na reação virulenta aos materiais sobre gênero, orientação sexual e preconceito feitos pelo MEC no “Escola sem Homofobia”. E por que tais tentativas de retrocesso têm ganhado tanto fôlego? Porque houve uma enorme mudança no cenário de 2009 para 2016. Foram duas greves de professores, a última com mais de 90 dias parados. E também duas ocupações de secundaristas, com consequências extraordinárias, que foram muito além de impedir o fechamento sumário de 90 escolas e forçar a efetivação da CPI da Merenda, mas colocaram em questão a escola em si, em tudo que ela é… e o que deveria ser. As ocupas secundaristas cresceram em SP e se espalharam por Goiás, Rio de Janeiro, Pará, Ceará, Rio Grande do Sul e outros estados. Além disso, viraram modelos na forma de reivindicar que permanecem até hoje: enquanto escrevo, algumas unidade da USP estão ocupadas, assim como as Funartes e algumas salas de Ministérios e Secretárias extintos pelo presidente interino. “Ocupar e Resistir” e “Ocupa Tudo” viraram palavras de ordem e ação em movimentos reivindicatórios pelo país todo. Tamanha movimentação progressista e questionadora não poderia passar sem um backlash, ou seja, uma reação conservadora de mesma ou de maior força, tentando recolocar as coisas “no lugar que elas sempre estiveram”. Minha tese é que esse backlash seria a tentativa de controlar os professores das matérias mais abertas ao debate de temas mais contemporâneos e menos dadas à possível transformação em pura e simples técnica. Matérias às quais teria sido atribuída, equivocadamente, a origem de tais movimentos – e que portanto devem ser controladas e, em último caso, caladas.

                Segundo o idéario da “escola sem partido”, o estudante é uma simples “tábula rasa”, folha em branco a ser preenchida por teorias e ideias de outros, especialmente do professor. Esse professor(a) faria parte de “um exército organizado de militantes travestidos de professores”, que, escondendo-se atrás da “cortina de segredo das salas de aula”, se aproveitaria da ingenuidade desses jovens para “impingir-lhes a sua própria visão de mundo”, que no caso seria a “esquerdista” ou “marxista” – é assim que os professores são retratados na página do grupo. Aliás, a página do “escola sem partido” oferece também aos pais e alunos formas de “descontaminação”, quais sejam, “flagrar” o trabalho do “doutrinador”, publicá-lo como denúncia (com nome do professor e local onde trabalha) e então abrir processo contra o este. Parece um cenário distópico, meio “1984”, onde todos vigiam e são vigiados, não é? Porém, qualquer professor que tenha apoiado a ocupação dos secundaristas na sua escola ou em outras sabe bem do que estou falando. A começar de quantas vezes deve ter escutado que “fez a cabeça dos alunos” ou “incitou a ocupar” ou “que é responsável pelo que aconteceu”.

                Os equívocos da ideia de “doutrinação de esquerda” pelos professores são tantos que fica até difícil de saber como começar a desmontar a ideia. Eu poderia abordar o tema dizendo que ler alguns artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e discutir o quanto estão distantes da realidade, por exemplo, não é um tema “de esquerda”, e sim de origem liberal, no entanto essa discussão exigiria algum conhecimento teórico, tempo e abertura para debate, que os leitores desse artigo com certeza têm, mas as pessoas que defendem a “escola sem partido” não – e provavelmente vão desprezar tudo que escrevi aqui sem ler, com o carimbo de “esquerdopata” ou coisa semelhante. Vou pelo caminho mais direto: não existe imparcialidade no conhecimento, no comportamento, na visão de mundo, no ensino, na vida. As ciências humanas já têm isso como dado faz um bom tempo, e um mínimo de leitura na área de História, Filosofia e Sociologia já confirmaria isso. Somos quem somos porque nascemos onde nascemos, na época que nascemos, na família em que nascemos, no país, estado, cidade e bairro que nascemos, na classe social em que nascemos, na religião em que fomos criados, com os amigos que tivemos, com as esperiências que tivemos na vida. Ou seja, nossa visão de mundo é parcial e condicionada por todas essas experiências, quer queiramos, quer não. É dessa posição que vemos o mundo. E é uma posição política, posição na pólis. Isso não quer dizer que estamos “presos” nessa posição, pois cada experiência nova, cada livro lido, cada filme, cada viagem, cada conversa, cada amizade tem o potencial de nos fazer ver o outro, os outros, o mundo dos outros. E aí questionar a nossa própria visão ou forma de ver.  A forma como escolhemos estar no mundo também é política. Ou seja, não é possível escapar da política. Portanto é falsa e manipuladora a ideia de que se possa ensinar sem tomar posição. A posição já foi tomada quando escolheram os temas do currículo, por exemplo, quando se deixa de lado a História da África, ou dos povos indígenas. Já foi tomada posição política quando se decide quanto tempo vamos discutir direitos humanos e quanto tempo vamos discutir fordismo e taylorismo. Tem posição política na forma que dispomos as carteiras dos estudantes na sala, se há espaço aberto para debate ou não, se há espaços de fala ou se a aula inteira é escrita na lousa e depois vem uma batelada de exercícios para fazer e fim. E, ao contrário do que se pensa, a mesma coisa acontece nas aulas de “exatas”, por mais que se tente argumentar que não. Basta substituir os temas que citei nas linhas acima pelos específicos da área. Assim, todos temos “lado” sim, temos posição sim. Os professores tem. E os estudantes também tem. Aliás, a visão de “tábula rasa” é outra que ficou para trás faz tempo. Os jovens chegam à escola já cheios de conhecimentos, experiências de vida e visões de mundo. Que vão se juntar às dos professores. Que às vezes vão se bater contra elas. Que vão questioná-las. Dentro e fora da escola. Também com as posições políticas dos telejornais, que as têm, mesmo que digam que não. Inclusive com as posições políticas dos pais e da família – que pasmem, têm posição política também… E olha só, sabe como chama esse processo todo? Aprendizagem. E não é o fato de ter posição que vai impedir a aprendizagem. O que impede aprendizagem, entre outras coisas, é o discurso único, inquestionável, empurrado goela abaixo e contrário à já existente diversidade humana – ou seja, que nega o outro e o seu direito de existir, de ser ouvido, de ser. Posso estar bem enganada, mas pelo que sei dos nossos jovens, a reação conservadora veio tarde demais e não sabe nem onde está pisando – ninguém os segura mais!

(Renata Hummel é professora de sociologia na rede estadual paulista. Graduada – bacharel e licenciada – em ciências sociais pela PUC-SP , com especialização em história, sociedade e cultura pela PUC-SP).

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